Que República?

Que República?

Inauguração de um fontanário em 1924 *

por Gaspar Martins Pereira (1)

 

"Fez-se uma verdadeira República?"

Em 1929, três anos depois do golpe militar que derrubou a I República, o democrata António Sérgio sintetizava, em tom crítico, a experiência republicana. A abolição da Monarquia não dera lugar a um programa coerente de reformas da vida social e económica. A revolução de 5 de Outubro não ultrapassara, para Sérgio, a negação da Monarquia e do clericalismo. "Fez-se então uma verdadeira República? Não se fez." Mantiveram-se os problemas estruturais do país, porque não se apostou na "passagem do oligarquismo e do comunitarismo de Estado a um regime progressivo de que beneficiasse o povo".

A crítica sergiana, partilhada por muitos republicanos, da esquerda e da direita, era, simultaneamente, lúcida e exagerada. A República falhara a obra patriótica de regeneração e de progresso que anunciara na época da propaganda. Não criara uma democracia assente no sufrágio universal, em maior justiça social e na reforma da máquina do Estado. Os Governos e os Parlamentos republicanos privilegiaram as questões políticas e perderam-se, frequentemente, nos meandros do tacticismo partidário, para não falar em mesquinhas animosidades pessoais e na recompensa das suas clientelas. A questão religiosa, desencadeada com a legislação anticlerical, a perseguição a monárquicos e católicos ou, ainda, as posições face ao movimento operário limitaram a acção política do partido democrático, largamente maioritário do ponto de vista eleitoral.

Mas seria injusto não reconhecer a difícil conjuntura que marcou os breves 16 anos da República e que condicionou a acção dos Governos republicanos: a pesada herança da Monarquia, tanto no plano económico e social como no plano cultural, a violenta e persistente reacção monárquica, a Grande Guerra e as suas consequências internas, desde as dificuldades de abastecimento e o agravamento do custo de vida até ao crescente protagonismo político dos militares, as epidemias de 1918-1919 e o seu efeito depressivo na sociedade portuguesa, a posição conservadora das elites económicas, bem como a agitação social. Neste contexto, seria injusto não reconhecer aspectos positivos da obra realizada, em diversos domínios, tanto pelo poder central como pelos poderes locais. Poderia destacar-se o esforço de desenvolvimento e descentralização da instrução primária, diversas medidas de fomento económico ou alguma legislação, avançada para a época, como com as leis da família ou várias leis laborais. E, sobretudo, para muitos republicanos, o exercício da cidadania aparecia como elemento-base da vida política e social.

É incontestável que essa "República de cidadãos" foi limitada por posições de intolerância, pelas profundas desigualdades que marcavam a sociedade, pelas próprias condições restritivas que excluíam a maior parte da população do exercício de direitos cívicos fundamentais. Mas é também incontestável que se assistiu a um assinalável crescimento do associativismo e a uma nítida expansão da vida cultural, aberta a todos os sectores sociais, sinais de dinamismo de uma incipiente sociedade civil.

 

Múltiplos caminhos

Muito ficou por fazer, certamente, e muito do que poderia ter sido feito perdeu-se na intensidade dos debates, no Parlamento, na imprensa, nas ruas, naqueles 16 anos incompletos e agitados. Mas isso não torna mais aceitável a imagem caricatural que a propaganda autoritária do Estado Novo tentou transmitir da I República, reduzindo-a ao caminho único da desordem e da violência, com o premeditado objectivo de enaltecer a "ordem" imposta pela ditadura militar e pelo Estado Novo, assumindo a ruptura não só com a experiência republicana mas também com o liberalismo anterior. A essa perspectiva conservadora, bem como à glorificação acrítica e descontextualizada da I República, como caminho, também único, de progresso, liberdade e democracia, vale a pena contrapor a análise histórica, buscando recuperar a complexidade desse período e perceber a multiplicidade de caminhos, os projectos e as realizações que então se destacaram, tanto como as suas hesitações e contradições. Neste sentido, não será de mais sublinhar que, para lá do protagonismo e das rivalidades de líderes carismáticos, a fragmentação do campo político republicano correspondia à pluralidade de tendências, já bem visíveis no período da Monarquia, embora, nessa altura, as divergências tivessem sido, em grande medida, ultrapassadas pelo denominador comum da luta pela mudança de regime.

Não é difícil perceber, por exemplo, a longa tensão entre os defensores de uma via evolucionista, que apostavam na transição pacífica da Monarquia para a República, através de vitórias eleitorais, e os adeptos de uma via revolucionária. Qualquer dessas linhas defendera, com aparente consenso, nos tempos da propaganda, o sufrágio universal. Mas, instaurada a República, não só não se cumpriu a promessa como se limitou o exercício do direito de voto aos alfabetizados, privilegiando as áreas eleitorais de Lisboa e Porto, onde os republicanos detinham maior influência. A distinção entre o "povo" e o "povo republicano" acabaria por se traduzir num divórcio, que seria fatal à República, entre o exercício do poder político e a maioria da população portuguesa. Além de limitado, o sufrágio foi desvalorizado, em diversas eleições, por níveis altíssimos de abstenção.

Não menos evidentes eram as divergências entre os que conferiam prioridade às questões políticas e os que valorizavam, como Sérgio e os seus companheiros da Seara Nova, a resolução das questões económicas e sociais. O magma republicano-socialista que remontava à geração de cinquenta do século XIX, em que se destacava o ideário de Henriques Nogueira, e que era ainda visível na geração de setenta, iria desfazer-se, logo a seguir, dando origem a campos distintos (republicanos, socialistas e anarquistas), não sem que se tecessem relações entre eles.

Se os socialistas, como Antero de Quental, defendiam que a "verdadeira República" era a "República Social", também muitos republicanos continuariam a aderir às propostas socialistas de maior justiça social. E, noutro caminho, poder-se-ia referir a colaboração entre republicanos e anarquistas na Carbonária, que viabilizou a implantação da República e que multiplicou os grupos de civis armados, participantes activos em vários acontecimentos posteriores, como a revolução de 14 de Maio de 1915, que pôs fim à ditadura de Pimenta de Castro, ou o combate à tentativa de restauração monárquica, no início de 1919.

 

A questão regional 

Entre as vias trilhadas pelos republicanos, merecem particular atenção as que conduziram a um afastamento progressivo do federalismo matricial e, a par dele, das promessas de descentralização e de reorganização administrativa do Estado.

Em meados do século XIX, Henriques Nogueira apontara, nos seus Estudos sobre a Reforma em Portugal, os caminhos conjugados do municipalismo e do federalismo, para a instauração de uma democracia republicana, contra a "centralização absurda" e "monstruosa" herdada do absolutismo. Essa foi a doutrina que imperou, mais por inércia do que por convicção, no republicanismo português até à implantação da República, mesmo depois da viragem para um discurso exacerbadamente nacionalista, a partir dos anos oitenta.O programa do Partido Republicano Português (PRP) de 1891, ainda em vigor em 1910, assumia a "nação" como "federação de províncias" e a "província" como "federação de municípios", de que decorriam os órgãos eleitos por "sufrágio universal", a "assembleia nacional" e as "assembleias provinciais". O projecto republicano de Código Administrativo, preparado, também em 1891, por Jacinto Nunes, apontava no mesmo sentido de uma verdadeira regionalização do país.

Porém, instaurada a República, o centralismo monárquico deu lugar ao centralismo republicano, um "centralismo administrativo mitigado", nas palavras de César Oliveira. A Constituição de 1911 consagrou o "Estado unitário", remetendo para mais tarde a questão da reorganização administrativa. As diversas vozes que continuaram a defender a concepção federalista ou regionalizadora foram abafadas. No seu livro Política Nova: Ideias para a reorganização da nacionalidade portuguesa, publicado em 1911, Alves da Veiga advogava quer o sufrágio universal, quer a regionalização (com a divisão administrativa do país em oito regiões). Porém, o projecto de Código Administrativo, elaborado por uma comissão governamental presidida por Jacinto Nunes e discutido na Câmara dos Deputados e no Senado, de 1912 a 1914, acabaria por abandonar o princípio da descentralização regional em favor de um modelo municipalista e de desconcentração da tutela do poder central, mantendo à frente dos distritos magistrados políticos da confiança dos Governos.

No pós-guerra, a questão regional voltaria a marcar novos debates e fracturas no campo republicano. No Congresso do PRP, realizado no Porto, em 1920, um grupo de influentes personalidades republicanas apresentou a Declaração dos 39, que daria lugar à formação do Núcleo Republicano Regionalista do Norte, só dissolvido em 1924. Por essa altura, a efervescência regionalista multiplicava-se em iniciativas que apontavam o dedo à República por não ter cumprido as promessas de reorganização administrativa e por ter mantido "a mesma centralização, a mesma dominação das províncias pelo Terreiro do Paço, as mesmas intrigas, os mesmos processos de caciquismo". A defesa da regionalização ressurgia, sob o impulso dos poderes locais e da sociedade civil, como no I Congresso Transmontano (1920), no I Congresso Beirão (1921), no III Congresso Nacional Municipalista (1922) e outros, ao mesmo tempo que se insinuavam outras vozes, reclamando o reforço da "ordem", perante a grave situação económica e financeira, a agitação social, a turbulência dos militares e a crescente instabilidade governativa, que levariam, em breve, ao baquear da República e à deriva para o Estado totalitário.

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(1) Professor catedrático, Faculdade de Letras da Universidade do Porto
* Anselmo Franco, Arquivo Municipal de Lisboa/AF