Portugal perdeu a guerra?

Portugal perdeu a guerra?

Sim e não. Não, porque combateu ao lado dos Aliados e desfilou com os vencedores sob o Arco do Triunfo. Sim, porque não obteve, no tratado de paz, o seu grande objectivo político, aquele que, em última instância, o tinha levado à guerra. Foi uma vitória com sabor a derrota.

Por Nuno Severiano Teixeira (1)

 

"Portugal perdeu a Guerra?" Esta pergunta fazia a manchete do jornal A Manhã de 9 de Maio de 1919. Estranha pergunta, num país que mantivera um conflito com a Alemanha, em África, desde 1914. E que tinha entrado oficialment em guerra, em Março de 1916, ao lado dos Aliados. Que tinha combatido em duas frentes no teatro africano e uma na frente ocidental do teatro europeu. E que desfilara na festa da vitória, sob o Arco do Triunfo, em Paris, ao lado das potências vitoriosas e enquanto potência vitoriosa. Não havia dúvida. E, no entanto, a dúvida instalara-se, nos meios políticos e na opinião pública. E a dúvida era legítima.

No fim da guerra, Portugal estava pior que no princípio. Economia arrasada, crispação social, instabilidade política. Por outro lado, a Conferência da Paz é vivida em Portugal com um sentimento amargo de injustiça. Portugal não sentia compensado na paz o seu esforço de guerra. É certo que Portugal estava entre os vencedores, mas há vitórias e vitórias. Há vencedores satisfeitos e vencedores insatisfeitos. Vencedores que atingem os seus objectivos de guerra e vencedores que os não atingem. E, em boa verdade, a avaliação da vitória reside nessa comparação entre os objectivos definidos na entrada em guerra e os que são obtidos nos tratados de paz.

Em Janeiro de 1917, quando as primeiras tropas partiram para o teatro europeu, o governo da União Sagrada definiu os objectivos nacionais. Chamou-lhe Palavras Claras - razões da intervenção militar de Portugal na guerra europeia. Mais do que uma definição de objectivos de guerra, tratava-se de uma justificação nacional para a entrada de Portugal na guerra europeia. Dirigia-se a todos os portugueses, mas dirigia-se, sobretudo, aos soldados que partiam. E recordava "as razões supremas que levavam a Pátria a pedir o seu sacrifício e o seu heroísmo". A retórica heróica era necessária ao moral das tropas. Mas era igualmente necessária à procura de um consenso nacional, que nunca conseguiu. Mas que razões eram essas, que levaram Portugal para a guerra? Primeiro, porque se tratava de uma guerra de alianças. E, tratando-se de uma guerra de alianças, Portugal, unido à Inglaterra pela mais velha aliança, não podia manter a neutralidade perante o estado de guerra entre a Inglaterra e a Alemanha. Segundo, porque Portugal, não sendo beligerante antes de 1916, tinha sido alvo de vários ataques militares e violações de soberania nos territórios coloniais: no Sul de Angola e Norte de Moçambique. Assim como já tinham sido atacados vários dos seus navios comerciais. Terceiro, a justificação imediata e que dera lugar à própria declaração de guerra: o pedido da Inglaterra a Portugal para requisitar os navios alemães surtos em portos portugueses. O Governo português invocava então, para justificar a requisição, as consequências da guerra, o estado da frota de marinha mercante e a própria situação do país que não poderia passar sem esses recursos. Finalmente, o carácter desinteressado e solidário da participação portuguesa. Isto é, a retórica heróica: "Não nos move nem o interesse de conquistas, nem a sede de recompensa. O interesse supremo que nos guia... é o de tornar ainda mais sólida a nossa aliança com a nobre Nação Inglesa... de a cimentar com os nossos próprios esforços e os nossos próprios sacrifícios, de a valorizar e de a engrandecer, engrandecendo-nos e valorizando-nos a nós mesmos."

 

Objectivos de guerra

 

Em boa verdade, eram dois os objectivos nacionais no momento da entrada em guerra. E ambos dependentes da Aliança Inglesa: o primeiro de natureza colonial; o segundo, de natureza europeia e peninsular. Isto, sem contar com os objectivos económicos e financeiros que emergem mais tarde e os objectivos de política interna que são outra história.

O objectivo colonial era claro e definido: a manutenção da soberania e da integridade territorial do Império. Era a grande preocupação nacional e o único objectivo que reunia consenso. Este consenso decorria da percepção concreta da ameaça que pesava sobre os territórios de Angola e Moçambique, fosse pelas pretensões coloniais alemãs, fosse pela transigência britânica, o que, aliás, ficara demonstrado nos acordos anglo-germânicos de partilha das colónias portuguesas em 1898 e em 1912-1913. A entrada em guerra ao lado dos Aliados e ao abrigo da Aliança Inglesa era a melhor garantia contra a ameaça alemã, mas, simultaneamente, a melhor forma de reforçar a aliança e reduzir a margem de manobra britânica na mesa de negociações no final do conflito. O objectivo europeu e peninsular decorria da fragilidade da situação internacional da República. Da vulnerabilidade perante a aproximação diplomática entre a Espanha e a Inglaterra, desde o encontro de Cartagena em 1907. Mas, sobretudo, perante as pretensões anexionistas da monarquia espanhola e a tolerância inglesa perante Espanha. Essa transigência ficou clara, por duas vezes, antes da guerra: nas incursões monárquicas em 1911 e 1912. Assim, ao entrar em guerra ao lado de Inglaterra e ao abrigo da Aliança Inglesa, Portugal conseguia um duplo objectivo: primeiro, diversificava a sua posição internacional. Face à Espanha neutra, um Portugal beligerante, reforçava a aliança com a Inglaterra; segundo, e, por esta via, procurava conquistar o tão desejado lugar no "concerto das nações".

O primeiro objectivo era consensual. Mas poderia ter-se alcançado com a manutenção da neutralidade e a concentração do esforço militar nas colónias. O segundo, pelo contrário, dividiu a sociedade portuguesa e passava, obrigatoriamente, pela beligerância. Descontados os objectivos internos, foi este último que conduziu Portugal à guerra europeia. Mas foi também o que o conduziu às bancadas da Sociedade das Nações. Eram estes os objectivos no momento da entrada em guerra. Mas não eram já os mesmos na conferência da paz.

 

Objectivos de paz

 

A questão colonial, principal objectivo de guerra, não chega a constituir-se como um verdadeiro objectivo de paz. A integridade territorial do império decorria, directamente, da beligerância portuguesa. Kionga, território português ocupado pelos alemães no fim do século XIX, é restituído a Portugal. Porém, é visto e defendido pela delegação portuguesa não como uma compensação, mas antes como a reocupação de um território nacional e, portanto, como a reposição de um direito. Por outro lado, afastada a hipótese das pretensões sul-africanas sobre o Sul de Moçambique e belgas sobre o enclave de Cabinda, Portugal não reclama quaisquer outras compensações territoriais em África. Em matéria colonial, Portugal considerou-se satisfeito e, no essencial, atingiu o objectivo de guerra: a integridade territorial das colónias. Mas os objectivos de paz tinham evoluído em relação aos objectivos de guerra. E, no pós-guerra, as dificuldades políticas e as necessidades económicas tinham alterado as prioridades. O esforço diplomático de Portugal em Versalhes concentrava-se, agora, sobre as condições económicas e financeiras e dirigia-se para quatro objectivos fundamentais: primeiro, o não pagamento das dívidas de guerra; segundo, o direito a reparações e indemnizações de guerra por parte da Alemanha; terceiro, a participação na redistribuição da tonelagem naval alemã e a constituição de uma frota mercante; finalmente, a tentativa de obter material militar para reequipamento das forças armadas.

Em maior ou menor grau, estes objectivos económicos foram alcançados. O mesmo não aconteceu com o grande objectivo político. É que, para além da questão colonial e das questões económicas, restava ainda a questão política fundamental: a conquista do tal "lugar no concerto das nações". Fórmula vaga e abstracta antes da guerra, mas que, agora, se tornava concreta e definida. Tratava-se da presença activa de Portugal no processo de reordenamento internacional do pós-guerra e, em particular, a sua participação no Conselho Executivo da Sociedade das Nações. Essa seria a grande vitória política, que nunca chegou a acontecer. Pelo contrário, esse foi o grande fracasso nos objectivos de Portugal. Fracasso, em termos absolutos, porque a candidatura portuguesa não chega sequer a ser considerada. Fracasso, mais grave, em termos comparativos, porque conseguiu a Espanha neutra o que não conseguiu o Portugal beligerante. Significava isto que Portugal não conseguiu, nem na península nem na Europa, o tão almejado lugar no "concerto das nações". Neste ponto, vale a pena perguntar, como perguntava a imprensa da época: Portugal perdeu a guerra ? Sim e não. Não, porque Portugal foi um país beligerante, combateu ao lado dos Aliados e sentou-se como potência vencedora na Conferência da Paz. Mais, porque obteve, integralmente, os seus objectivos coloniais e, parcialmente, os seus objectivos económicos. Sim, porque não obteve, no tratado de paz, o seu grande objectivo político. E se a esse objectivo internacional gorado se juntarem os objectivos internos nunca alcançados, o balanço não é positivo. No fim da guerra, era claro: a situação económica e financeira, a instabilidade social e a crise das instituições não só tinham bloqueado a concretização do projecto modernizador da República, como, em última instância, tinham impossibilitado a consolidação política e a legitimação nacional do regime. Mais, tinham aberto a porta à deriva autoritária que, em boa parte, nasceu dos escombros da Primeira Guerra. É uma vitória com um sabor a derrota.

(1) Historiador e professor da Universidade Nova de Lisboa

Para saber mais:

Duarte Ivo Cruz (pesquisa e introdução), Estratégia Portuguesa na Conferência da Paz 1918-1919, As Actas da Delegação Portuguesa, Lisboa, Fundação Luso-Americana, 2009.

José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência da Paz: Paris 1919, Lisboa, Quetzal, 1992

Nuno Severiano Teixeira, O Poder e a Guerra 1914-1918. Objectivos nacionais e estratégias políticas na entrada de Portugal na Grande Guerra, Lisboa, Editorial Estampa, 1996.