Os desnacionalizados da I República

Os desnacionalizados da I República

Amélia Rey Colaço em 1917 - Ilustração Portuguesa

As questões do poder e da política no século XX são particularmente sombrias. Tanto pelos milhões dizimados em resultado de um bruto abuso de poder – circunstâncias partilhadas com séculos passados – como ou, talvez, sobretudo pelas formas novas e terríveis inventadas pelos Estados para neutralizar, intimidar e liquidar os seus nacionais.

 

Que estas novidades tenham aparecido e acompanhado o enraizamento do princípio da soberania individual e da igualdade perante a lei tem sido um motivo inesgotável de análise e estudo: como puderam os ideais das Luzes produzir tão negros tempos? No famoso ensaio sobre o Declínio do Estado Nacional, Hannah Arendt procura estabelecer a genealogia dos Direitos do Homem e explora o paradoxo entre os direitos políticos e o facto, “provado”, de não ser possível confiar nos Estados nem para se autolimitarem, nem para proverem ao bem-estar dos respectivos cidadãos.

Sustenta Arendt que as duas guerras europeias do século XX mostraram que os vínculos políticos de cidadania, a lealdade ao Estado e a protecção que este pudesse ou quisesse dispensar emanavam não de uma categoria “direitos do homem” mas sim de certidões de nascimento, passadas e carimbadas nos guichets dos territórios nacionais, estritamente reservadas aos ali nascidos, de sólida e comprovada ascendência.

As crises – económica e política – mais provariam que os direitos assistem aos cidadãos e que só os nacionais têm direito incontestável à cidadania. Os Direitos do Homem, afinal, não são inerentes ao ser humano mas sim um atributo nacional, uma funcionalidade que os Estados garantem com maior ou menor presteza a indivíduos que apresentem o registo de nascença certo. Uma pessoa sem nacionalidade e sem a protecção de um representante nacional não tem cabimento no sistema internacional de Estados. E aqui entram as perguntas de resposta difícil: Quem pertence? Onde? Como? E quem decide?

 

O problema da apatridia

Em 1913, uma lei alemã passou a permitir a dupla nacionalidade. Por isso, durante a I Guerra, os principais Estados europeus emendaram as respectivas leis para poderem cancelar naturalizações dúbias. O número de desnaturalizados não atingiu grandes proporções, mas o precedente estava criado e entre as duas guerras os naturalizados foram geralmente os primeiros a virar apátridas. No seu livro, em nota de pé de página, Arendt regista que a primeira lei deste tipo foi uma lei de guerra francesa, de 1915, que apenas se referia a cidadãos naturalizados de origem inimiga que tivessem mantido a nacionalidade originária. Mas “Portugal foi muito mais longe num decreto de 1916 que automaticamente retirava a nacionalidade portuguesa aos nascidos de pai alemão”.

O problema da apatridia tornarse-ia grave depois da I Guerra. Em 1921, um milhão de russos foram desnacionalizados por um decreto de Lenine. Em 1922, a Bélgica produz uma lei que cancelava a naturalização de quem tivesse cometido actos antinacionais durante a guerra, reafirmando-o em 1934, com um novo decreto abrangendo os “que faltassem gravemente aos deveres de cidadão belga”. Em Itália, desde 1926, qualquer pessoa podia ser desnaturalizada se se verificasse “não ser digna de cidadania italiana” ou ser uma ameaça à ordem. No mesmo ano, foi a vez do Egipto; em 1928, a Turquia.

Em 1927, a França ameaçava com a desnaturalização todos os novos cidadãos que cometessem actos contrários ao interesse nacional. Em 1933, foi a vez da Áustria e da Alemanha, esta com as tristemente célebres leis de Nuremberga a desnacionalizar os nacionais alemães de origem judaica. Portugal entrara na I Guerra a 9 de Março de 1916. De imediato começaram a surgir pequenas notícias nos diários, sobre a partida de alemães, as respectivas andanças por Lisboa, as voltas pelos guichets, do Governo Civil para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e vice-versa.

Prevalecia um ambiente algo irreal quanto ao que significasse estar em guerra, excepto na profusão declaratória da imprensa e dos políticos sobre o heroísmo, a defesa da pátria. Os jornais prometiam novas leis aplicáveis aos súbditos alemães. Passado um mês, a 4 de Abril, um primeiro diploma, emanado do Ministério do Interior, proibia a entrada no território da República aos súbditos da Alemanha e dos seus aliados. Aos estrangeiros já residentes em Portugal eram dados oito dias para solicitar título de residência válido por seis meses, prorrogável, o qual poderia ser retirado a qualquer momento. Eram medidas típicas, standard, se assim se pode dizer, para a situação de guerra. Eram porém insuficientes, sobretudo porque não tipificavam o inimigo nem criavam instrumentos para lidar com as infiltrações e a espionagem. Ou pelo menos assim pensavam os aliados, cujas embaixadas pressionavam Portugal a regular o problema. A 18 de Abril, a euforia da recuperação do território africano do Quionga (Moçambique) foi toldada por um grande incêndio no Arsenal, em Lisboa: a Escola Naval, a Sala do Risco e o Depósito de Cartas, devorados pelas chamas, com enormes prejuízos, captaram a primeira página dos diários. O fogo – ou o seu aroma a sabotagem – insufl ou ainda mais os ardores patrióticos e os principais editoriais reclamavam medidas contra os alemães. Em editorial, A Capital ralhava: “Entre nós, por mais paradoxal que isto pareça num país que se encontra em estado de guerra, os súbditos alemães não estão sujeitos a nenhum regime preventivo especial, o que constitui, além de um grave perigo, um tratamento de excepção em relação àqueles que lhes foi dado em todos os outros países beligerantes nossos aliados.”

 

Os aliados

De facto, 1914 pôs fim radical a uma era em que os governos olhavam os estrangeiros sem suspeita ou desconfiança e as fronteiras se podiam atravessar descuidadamente. A I Guerra gerou hostilidade para com todos os que pudessem querer mal à pátria, e a preocupação com o controlo dos respectivos movimentos levou ao internamento e/ou deportação de centenas de milhares de civis, incluindo mulheres e crianças.

Na abertura das hostilidades, havia mais de 50 mil alemães a residir no Reino Unido, e para cima de oito mil súbditos britânicos de origem alemã naturalizados. Havia também números consideráveis de austríacos, húngaros, búlgaros e otomanos. Em França, a população estrangeira ascendia a perto de milhão e meio – segundo estimativas da época, em Paris havia cerca de 400.000 “súbditos inimigos”. Muitos destes “inimigos” eram reservistas, com preparação militar e, se autorizados a regressar ao seu país, iriam imediatamente alistar-se.

Por outro lado, lidar com estes “inimigos” de forma justa era dificultado pela convicção de que onde havia alemães em largo número havia também redes superiormente bem organizadas de espionagem e sabotagem. Daí que os países perto da Alemanha ou que com ela partilhavam fronteiras encarassem o internamento como solução. Os súbditos britânicos de origem hostil podiam ser presos e internados em campos de detenção sem processo em tribunal e sem direito a habeas corpus, e muitos o foram.

O governo francês criou um programa de campos de concentração a oeste de uma linha desenhada entre Dunquerque e Nice: em 1915, havia ali 52 destes campos, internando para cima de 45.000 alemães e austro-húngaros. Em Portugal, referências ao censo de 1910 davam números como 292 portugueses na Alemanha e, em Portugal, 969 súbditos alemães. Estes apareciam na imprensa como detentores de capitais avaliados em 40 milhões de marcos. A 21 de Abril de 1916, Afonso Costa fazia sair pelo seu Ministério das Finanças o Decreto-Lei 2.350, que bania todos os súbditos alemães de ambos os sexos, mandados sair pela fronteira terrestre, no prazo de cinco dias, excepção feita aos do sexo masculino entre os 16 e os 45 anos, que seriam conduzidos para a ilha da Terceira, podendo fazer-se acompanhar de mulher e filhos menores (despesas a seu cargo). O incumprimento implicava julgamento por tribunal militar e condenações de um a três anos de prisão em presídio militar. Quanto aos indivíduos sem nacionalidade, mas que tivessem sido alemães, podia o governo aplicar-lhes todas estas disposições se visse inconveniente na livre residência em território português. Restringia-se também a capacidade civil e a propriedade industrial e comercial de nacionais alemães, sujeitas a arrolamento e sequestro em modalidades habituais em estado de guerra.

A opinião publicada na imprensa ficou satisfeita. No dia seguinte, os resultados começaram a aparecer nos jornais. O Diário de Notícias informava sobre o “Êxodo dos Alemães”: 51 em idade militar, internados, 160 intimados a deixar o país em cinco dias. No Porto, 17 alemães e 15 “duvidosos”. Em Lisboa levantaram-se dúvidas sobre a nacionalidade de 22 pessoas apontadas como alemãs. “Constatouse à vista dos documentos que ou eram portugueses ou tinham sido há muitos anos naturalizados noutros países. Entre os duvidosos figuravam 11 pessoas da família D’Orey; duas da família Wagner, uma da família Bachofen... Um dos alemães que se apresentaram às autoridades é casado com uma senhora portuguesa. Tem um filho que serve o Exército português e outro que, tendo apenas 17 anos e não declarando por que nacionalidade optava, tem de acompanhar a família no desterro.”

 

Desnacionalização por atacado

Que fazer com estas dúvidas? Dois dias depois, a 23 de Abril, novo decreto de Afonso Costa trazia novas soluções. O Decreto 2.355 retirava a qualidade de cidadão português – desde a data da declaração de guerra – aos indivíduos nascidos em Portugal de pai alemão, a menos que obtivessem resolução do governo, em sentido contrário, publicada no Diário do Governo; anulavam-se as naturalizações concedidas a súbditos da Alemanha e de países seus aliados. Autorizava-se a expulsão do território português destes indivíduos, e ainda os de ascendência alemã, mas juridicamente com outra nacionalidade, incluindo a portuguesa, desde que fosse inconveniente a sua residência em Portugal.

Estas autorizações de residência eram sempre precárias, limitadas a determinados pontos do território português e sujeitas a fiscalização, só podendo ser concedidas mediante prévio despacho favorável do MNE. A falta de apresentação de pedido de autorização de residência no prazo de cinco dias importava expulsão imediata. O governo poderia expulsar de todo o território português os indivíduos estrangeiros ou portugueses que julgasse favoráveis aos inimigos e por isso prejudiciais à defesa nacional.

Esta medida de retirada da “qualidade de cidadão” aos portugueses filhos de pai alemão veio tirar do sossego largo número de famílias, cuja vida se viu de súbito ensombrada pela ameaça – e concretização – de sequestro de bens e imediata expulsão. Os requerimentos a pedir declaração de cidadania e nacionalidade começaram a empilhar-se no MNE. Seis dias depois, a 29 de Abril, o Diário de Notícias apontava 178 descendentes de alemães já apresentados.

 

Os equiparados

Impunham-se mais esclarecimentos. A 9 de Maio, novo Decreto, o 2.377, também da mão de Afonso Costa, trazia mais precisões. Agora, os indivíduos que haviam perdido a qualidade de cidadãos portugueses eram equiparados aos súbditos inimigos quanto à capacidade e regime de bens (arrolo e sequestro), devendo sair do território nacional no prazo de cinco dias, sob pena de incorrerem na sanção do julgamento militar e penas até três anos de prisão. Exceptuavam-se os que, antes da declaração de guerra, fossem funcionários do Estado ou dos corpos administrativos e os que estavam prestando ou haviam prestado efectivo serviço militar no Exército ou na Armada. Também ficavam autorizadas a viver em Portugal, mediante permissão específica do governo, as viúvas, divorciadas ou solteiras, de nacionalidade alemã, com filhos no serviço militar.

As pessoas assim autorizadas a residir em Portugal não podiam exercer as profissões do comércio ou da indústria, nem o ensino particular ou doméstico. Todas estas providências só poderiam deixar de valer mediante concessões ou restrições especiais do Conselho de Ministros, devidamente fundamentadas e publicadas no Diário do Governo. Finalmente, “os habitantes do território português” – já nem mereciam título de nacionais – com ascendência alemã até ao 3.º grau inclusive continuavam com residência em Portugal sujeita à precariedade de autorização governamental. Livravam-se do sequestro de bens. Não era pouco.

 

Chuva de requerimentos

As reacções começaram a subir de tom. Constava que o governo de Espanha estava arreliado com os problemas de alojamento dos expulsos de Portugal. O editorial de A Capital notava que “... pelo último decreto que regula a situação dos filhos dos alemães, impendem sobre diversas criaturas, que, se alguma nacionalidade têm, é a portuguesa, penas de tal maneira graves que não podem ser aplicadas sem que a justiça sofra profundo desrespeito”.

Na Luta, Brito Camacho escrevia ser “preciso nas circunstâncias em que nos encontramos que o Estado não despreze meio algum de se defender; mas também é preciso que não leve o direito de defesa até ao ponto de ser arbitrariamente perseguidor”. Nos círculos diplomáticos, reclamava-se incessantemente contra a expulsão de Portugal de funcionários consulares ou diplomáticos ou nacionais de países neutros, obrigados a deixar o país por de alguma forma serem equiparados aos portugueses que eram equiparados a alemães.

Na Assembleia de Deputados, o decreto que equiparava a súbditos inimigos os indivíduos nascidos em Portugal com ascendência alemã, “colocando-os sem pátria e expulsando-os do país onde nasceram”, era apodado de verdadeiramente iníquo. Prestando contas no Senado, Afonso Costa dava a posição do governo: “... Há muitos casos difíceis e até há casos absolutamente inesperados e interessantes; o governo encontrou a forma melhor de resolver a questão, fixando preceitos e presunções aceites pelo Código Civil, e depois do que se estabeleceu só se darão despachos e tomarão decisões fundamentadas e publicadas no Diário do Governo, para que os interessados as conheçam e vejam as razões que determinam o governo.

“Assim quanto a um pai austríaco, com filho no Exército português, embora o pai perca, por efeito do decreto, a naturalidade portuguesa, o filho não é abrangido pela determinação que manda que o pai saia dentro de cinco dias do território português, mas fica sujeito a vigilância, a exame, a investigação, e desde que o governo entenda que não deve continuar residindo em Portugal, fá-lo-á sair por uma simples ordem sua. O pai tem que sair para Espanha, sob pena de ser preso e submetido ao Tribunal Militar que julga e condena; se tem interesse em vir, porque tem cá os seus filhos, continua o processo que tem pendente no MNE, e espera que o governo assuma a responsabilidade de escrever no Diário do Governo que ele pode viver em Portugal. “Os indivíduos que saem do país não ficam privados de fazer prova e promover a concessão de residência em Portugal; mas se são tais que, só porque tem de deixar de viver em Lisboa ou no Porto para viverem em Badajoz ou Barcelona, isso os torna inimigos de Portugal, a esses para nada os quer o governo.”

 

Ricos, pobres e remediados

Os requerimentos amontoavam-se. Centenas e centenas deles estão ainda hoje à disposição para consulta no Arquivo Histórico-Diplomático do MNE. Viúvas, soldados, Frauleins, gente chique ou modesta: a vasta maioria, bisnetos de alemães, muitos deles fugidos da Alemanha por ocasião das revoluções de 1848. Refugiados políticos ou económicos, de entre o milhão de alemães que na altura deixou a Europa e partiu para os EUA, uma pequena fatia instalara-se no Portugal liberal. Agora, viam-se apanhados nas voltas da história.

Deferidos de imediato, como portugueses, Amélia Rey Colaço, Carolina Michaelis, Luís Cinatti Keil, filho de Alfredo Keil. E muitos outros, como Eduardo Schwalbach, família Sommer, Moser, Wagner, Wandschneider, Ulrich... Outros, pobres, operários metalúrgicos ou canalizadores, acharam-se indeferidos.

Os recusados mais badalados foram sem dúvida os das famílias D’Orey e Burmester. Guilherme Achilles D’Orey viera parar a Lisboa fugido à reviravolta contra-revolucionária pós-1848. Fora aqui bem acolhido, no meio das lutas liberais, recebendo uma pensão do governo liberal português, tendo também passado pelos Açores. Agora, os seus filhos e toda a numerosa família eram apanhados em cheio pelos decretos de desnacionalização. Ruy, Guilherme, Luís e Waldemar D’Orey, os dois últimos antigos funcionários do Ministério do Fomento, foram a face visível da demanda contra o Governo. O Diário de Notícias informava: “O Sr. Ruy D’Orey é como se sabe associado da firma Orey Antunes, à qual os bancos portugueses se recusaram a fornecer o dinheiro que aí tem essa firma, no intuito de evitar consequentes dificuldades na dúvida de que esse comerciante fosse considerado alemão.”

A imprensa em Lisboa imputava o indeferimento a simpatias monárquicas, mas as reacções mantiveram-se muito discretas. Já a imprensa brasileira reagiu vivamente, como se lê, por exemplo, no Jornal do Comércio da Tarde, que titulou, a 25 de Maio de 1916, “Uma injustiça do governo português. A expulsão dos D’Orey de Portugal”: “... Hoje na mesma terra da Inquisição... por motivos inconfessáveis, mas que dão margem a presunções, que escaldam e denigrem a reputação... Portugueses de lei são expulsos só porque o apelido de estrangeiros bimbalha menos aos ouvidos castos dos patrioteiros.

Os D’Orey, sujeitos às leis de naturalização, tendo cumprido com os deveres de cidadãos lusitanos, o imposto de sangue das prescrições militares, e os direitos civis e políticos – só porque assim deu na gana a sua perseguição injustificável, são expulsos de seu país e assistem sem meios de resistência ao esbulho da sua casa comercial, entregue aos cuidados de um intruso nomeado a intento do governo... Então o que é feito do Código Civil e da Constituição? ... Imagine o leitor que os EUA declaravam guerra à Alemanha. Se o critério jurídico e moral de Lisboa influísse como regra adoptada, milhões de alemães natos, criados e educados na América do Norte... seriam expulsos... Se a inconcebível medida... entrasse na legislação universal como um princípio respeitável, a que abomináveis excessos não estariam sujeitos todos os que se considerem nacionais das diferentes nacionalidades da orbe? É lamentável que uma decisão draconiana, injusta, contrária à moral e ao direito pré-estabelecido – não despertasse o clamor entre os próprios que dirigem a República e devem estar cientes das graves dificuldades que a assoberbam, para não lançarem à fogueira mais combustível, nem lhe diminuírem as simpatias que devem ser a melhor e a mais resistente adraga das novas instituições.” Só em Outubro de 1916 seriam anulados os despachos de expulsão da família D’Orey. No Porto, a família Burmester foi severamente tratada. Antes da entrada de Portugal na guerra tinham tido a infeliz ideia de adquirir títulos de uma emissão alemã de obrigações de guerra. Com os decretos, foram forçados a mudar-se para Vigo, a partir de onde moveram uma morosa e complicada guerra judicial em prol dos seus direitos civis e patrimoniais. O caso é curioso, por muito documentado, e também pelo empurrão constante entre Governo e Procuradoria. Gustavo Burmester requereu, por duas vezes, em Abril e Junho de 1916, autorização para residir em Portugal e levantado o sequestro dos bens. Alegava que os decretos não se lhe aplicavam, pois ao tempo do seu nascimento no Porto, em Fevereiro de 1853, “seu pai, oriundo do estado e cidade livre de Hamburgo e ali nascido em 22 de Julho de 1819, não podia ainda ser considerado alemão, visto a terra da sua natalidade pertencer à Dinamarca, e só muitos anos depois vir a fazer parte da Confederação Germânica”. Os requerimentos foram indeferidos. A Procuradoria, por unanimidade, dizia ser Burmester abrangido pelos decretos.

O governo não concordava e insistia por novos pareceres da Procuradoria. A 12 Janeiro 1917, E. Daeschner, ministro da França em Portugal, comentava a Aristide Briand: “Alguns Alemães puderam já regressar a Portugal. Diz-se que Alexandre Braga recebeu 50 contos para deixar M. Burmester (do Porto) regressar, ameaçou demitir-se do Governo para forçar os colegas a aceitar a decisão – mas sem sucesso, desta vez.” As palavras de fecho chegam-nos de outro residente forçado de Vigo, Eugénio Kemp, negociante, nascido em Sever do Vouga, em 1865, de pai alemão e mãe francesa, sempre considerado como cidadão português, que termina o seu pedido de regresso a Portugal dizendo: “Presentemente a minha situação política é a de um indivíduo sem nacionalidade alguma, o que V. Exa. certamente deverá convir, é sumamente desagradável e prejudicial.”

 

Quem pertence?

A situação foi corrigida com a ratificação dos tratados de paz com a Alemanha e a Áustria, em 1920 e 1921, e por meio de um conjunto de decretos subsequentes que revogaram toda a legislação especial produzida a propósito do estado de guerra. Em 1923, a maior parte dos casos estava sanada. Numa primeira análise dir-se-ia que estes decretos se referiam à condição jurídica dos estrangeiros, numa conjuntura específica e transitória.

Todavia, a originalidade destes decretos reside nas disposições que expressamente versam o vínculo da nacionalidade, tão severamente ideológicas, tão drasticamente removidas de um estado de necessidade e de qualquer aroma liberal. E, sobretudo, quão antecipatórias dos movimentos que viriam trazer à Europa milhões de refugiados e apátridas, sobretudo russos, arménios, e nos anos 30 e 40, judeus, com os resultados terríveis que se sabem. A história das regras que governam a aquisição ou perda de nacionalidade é uma história complexa, que tem posto duramente à prova o regime da soberania popular instituído pela Revolução Francesa. Ao trazer luz a estes casos que vivem entre a lei e a política ou, se quisermos, entre o Direito e o Poder, documenta-se um caminho estreito, por vezes sombrio. E o actual debate sobre o lugar dos “ilegais”, “sem papéis” no “Estado de direito” e na “sociedade dos direitos”, volta a mostrar como em tempos de crise é difícil equilibrar o triângulo extremamente dinâmico que se forma entre o poder institucionalizado, a população e o território. Que maus ventos impeliam já a República?

* A versão completa deste artigo será publicada nas Actas do Colóquio “A I República e a Política Externa”, que decorreu a 9 e 10 de Setembro no Museu do Oriente