Terceiro batalhão da GNR em Alcântara, na manhã de 19 de Outubro *
Por Jorge Almeida Fernandes (1)
Os crimes da "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921 abrem uma devastadora crise moral na República e marcam o início da cadeia de conspirações militares que culminam no 28 de Maio.
Na noite de 19 para 20 de Outubro de 1921 foram assassinados em Lisboa António Granjo, primeiro-ministro demissionário, o almirante Machado Santos, o "herói da Rotunda" no 5 de Outubro, o comandante Carlos da Maia, que liderou a revolta da Marinha no mesmo 5 de Outubro, o comandante Freitas da Silva, chefe de gabinete do ministro da Marinha, o coronel Botelho de Vasconcelos, antigo ministro de Sidónio, e o motorista Jorge Gentil.
Foram chacinados por marinheiros, guardas republicanos e civis armados, na sequência de um golpe chefiado pelo coronel Manuel Maria Coelho, o "heróico tenente Coelho" do 31 de Janeiro de 1891 no Porto. O episódio ficou na memória como "a noite sangrenta".
No enterro de Granjo, discursou Cunha Leal, que o acompanhou até à morte: "O sangue correu pela inconsciência da turba - a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda à solta, matando porque é preciso matar." Acrescentou Jaime Cortesão: "Sim, diga-se a verdade toda. Os crimes que se praticaram não eram possíveis sem a dissolução moral a que chegou a sociedade portuguesa."
Antes do crime, um resumo do golpe.
O 19 de Outubro
Após o assassínio de Sidónio e o fiasco da Monarquia do Norte, endurece a luta pelo poder no campo republicano, entre democráticos radicais e liberais conservadores.
Os radicais tinham uma força pretoriana, a Guarda Nacional Republicana, que, depois do sidonismo, viu os efectivos elevados para 14 mil homens e foi armada com artilharia e metralhadoras pesadas. Servia de contraponto ao Exército, de lealdade duvidosa. Fazia e desfazia governos e perseguia os adversários.
O segundo pilar eram os marinheiros. "De forma mais permanente e umbilical, a força armada do radicalismo lisboeta e da Margem Sul do Tejo será, como sempre, a Marinha. A Marinha do 5 de Outubro, do 14 de Maio de 1914, dos ataques ao reduto sidonista no Parque no 5 de Dezembro de 1917, do assalto de Monsanto em 1919, da "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921, a Marinha da revolução reviralhista de 7 de Fevereiro de 1927" (Fernando Rosas).
Por fim, os revolucionários civis: "O Partido Democrático continuou a basear-se nos arruaceiros do costume (...) e, entre 1919 e 1921, Lisboa regressou à "selva", ao reino dos rufias políticos dos cafés da Baixa" (Rui Ramos).
Em 24 de Maio de 1921, o Presidente da República, António José de Almeida, entrega o governo ao liberal Barros Queiroz. As eleições de Julho são ganhas pelo Partido Liberal. A 30 de Agosto, António Granjo forma governo. Republicano, mação e carbonário, é imediatamente objecto de uma campanha de ódio na imprensa radical, que o acusa de servir "a Moagem e as forças vivas" e de favorecer os monárquicos. Corre o rumor de que tenciona "cercar" Lisboa pela tropa para desarmar a Guarda.
O golpe estala na madrugada de 19 de Outubro, dirigido pelo coronel Coelho e oficiais da GNR e da Marinha. A Guarda ocupa o Terreiro do Paço e a Rotunda. No Tejo, o Vasco da Gama e outros navios secundam o golpe. Os marinheiros controlam o quartel de Alcântara e o Arsenal. Grupos de polícias e de civis armados percorrem a cidade e vão à Penitenciária libertar o assassino de Sidónio.
Sem força militar, Granjo apresenta a demissão a António José de Almeida, que a aceita, mas recusa entregar o poder a Coelho.
A "camioneta-fantasma"
"Depois veio a noite infame (...) sórdida e satânica", escreveu Raul Brandão.
A meio da tarde, Granjo foge de sua casa, na Avenida João Crisóstomo, pelos quintais das traseiras e pede abrigo a um adversário político, Cunha Leal. Soldados da GNR e civis armados tentam forçar Leal a entregar Granjo. Ele recusa e procura, em vão, obter socorro de amigos políticos ligados ao golpe. Depois de muitas peripécias, resignam-se a ser levados até ao Vasco da Gama, onde Granjo ficaria a salvo. Leal acompanha-o.
A camioneta onde são metidos não os leva ao navio, mas ao Arsenal. São separados à força. Leal é ferido a tiro. Denunciará no julgamento a "cobardia" de oficiais presentes.
Em As Minhas Memórias, Leal transcreve o Diário de Lisboa, que reconstitui o crime na linguagem da época. "Está aí o malandro do Granjo?" Marinheiros, guardas e civis invadiram a sala onde se encontrava o ex-presidente do Conselho. "Soou uma descarga; debaixo corresponderam. António Granjo caiu ao comprido, vertendo sangue por inúmeros ferimentos. Estava ainda nas últimas convulsões quando um dos assassinos, que, no dizer de uma testemunha ocular, é um clarim da GNR, de desmedida estatura, sacou da espada e a cravou no estômago, com tal violência que ficou presa no sobrado. Depois, friamente, o facínora, pondo o pé sobre o peito de António Granjo, sacou a arma e gritou triunfalmente, mostrando-a aos companheiros: "Venham ver de que cor é o sangue do porco!""
Essa "camioneta-fantasma" continua a marcha. No lugar da frente vai o marinheiro Abel Olímpio, o Dente de Ouro. Procuram Carlos da Maia. "É arrancado dos braços da mulher, que grita, inutilmente, cheia de dor, pedindo piedade para o marido e o filho que tem nos braços" (R. Brandão). Maia é levado para o Arsenal. Logo à porta, é morto à coronhada.
Às duas da manhã, a camioneta pára na Rua José Estêvão, onde mora Machado Santos. Ele resiste e invoca a qualidade de almirante. Em vão. É metido na camioneta. Esta avaria junto ao Intendente. "Desça almirante, que vai ser fuzilado."
Segue-se o chefe de gabinete do ministro da Marinha, comandante Freitas da Silva, abatido "pela turba" à porta do Arsenal. Ferido a tiro, o coronel Botelho de Vasconcelos morrerá no hospital.
Outros alvos, como o antigo primeiro-ministro Tamagnini Barbosa (que foi preso por polícias) ou o industrial Alfredo da Silva (ferido a tiro perto de Leiria) escapam com vida. À excepção de Granjo, todos os mortos tinham sido sidonistas.
À noite, para conter "a rua", António José de Almeida encarrega Coelho de formar governo. Durará 15 dias.
O julgamento
A "noite sangrenta" teve efeitos morais devastadores. É a sentença de morte do radicalismo. Os próprios democráticos passam a exigir o "desarmamento da Guarda" e "da rua". A GNR será neutralizada em 1922.
Os republicanos tinham um problema que Raul Proença equacionou assim: "Quando um movimento sedicional se produz nas circunstâncias do actual, por melhores que sejam as intenções dos seus dirigentes, a baixa vaza humana dos sectários acha neles ocasião asada para exercer os seus instintos de morte e rapina." Se os democráticos se tinham servido da "rua" e de "milícias armadas", urgia separar os chefes da ralé.
O julgamento da "noite sangrenta" desenrola-se em vários actos. A 8 de Dezembro de 1922, são condenados no Tribunal de Santa Clara os três polícias que prenderam Tamagnini. Os chefes do 18 de Outubro e outros oficiais são absolvidos a 22 de Fevereiro de 1923. A 1 de Junho são condenados 13 "executantes". O Dente de Ouro apanha 12 anos de prisão maior e 20 de degredo. Um outro, Palmela Arrebenta, grita acusações a um dos chefes do golpe, o capitão Camilo de Oliveira.
O tribunal concluiu não haver prova de que os assassínios tenham sido planeados pela junta revolucionária do 18 de Outubro. O general Vieira da Rocha, nomeado comandante da GNR na noite de 19 de Outubro, deu uma justificação: "Com 4000 homens [da GNR] dispersos numa cidade como Lisboa, era impossível evitar o crime. Mais difícil era prevê-lo."
A cilada da memória
Alguns republicanos não se resignaram à sensata contrição de Cunha Leal.
Na hemeroteca digital de Lisboa podemos consultar um diário republicano da época, A Capital, próximo dos radicais. É elucidativo seguir aí o julgamento. A Capital insinua uma tese: os oficiais do 19 de Outubro são "lídimos republicanos"; os executores são o braço de uma conspiração monárquica para assassinar "heróis republicanos". O Dente de Ouro seria manipulado pelo padre Maximiliano Lima, seu conhecido ou parente.
Nas entrelinhas, vislumbra-se um conflito republicano. A Capital denuncia o "processo monstruoso", a incompetência e a má-fé da sua instrução, a cargo de Alexandrino de Albuquerque, subdirector da Polícia de Investigação Criminal (PIC), que não dá crédito à conspiração monárquica.
A investigação começara a ser feita por Barbosa Viana, director da Polícia de Segurança do Estado (PSE), que imediatamente se terá lançado na busca da "pista monárquica". A PSE teve um papel activo no 19 de Outubro e por isso, em 1922, foi substituída pela Polícia de Defesa Social, depois denominada Polícia Preventiva e de Segurança do Estado, com competências reduzidas à "vigilância secreta".
No seu testemunho em Santa Clara, Barbosa Viana falou num vasto complot monárquico e acusou o Dente de Ouro de ser "agente de ligação" dos monárquicos na Marinha. A Capital insurgiu-se contra a indiferença a que o tribunal votou este depoimento, aparentemente lido como intoxicação. Será aqui que remonta a lenda monárquica da "noite sangrenta".
O Dente de Ouro esteve sempre no centro da controvérsia. De início, insinua a responsabilidade de republicanos. Tempos depois muda de opinião, apontando a pista monárquica a Berta da Maia, viúva de Carlos da Maia, que desesperadamente procura uma explicação (As minhas entrevistas com Abel Olímpio, o Dente de Ouro).
É a partir desta "revelação" que alguns historiadores e jornalistas republicanos vão sustentar a tese da dúvida sobre a autoria do crime. A fórmula é: "Ao que parece", terá havido um mandante monárquico, até um padre, talvez a "mão de Espanha".
Em última análise, a "noite sangrenta" seria uma espécie de crime retroactivo do salazarismo. Será fascinante explicar como padres e monárquicos infiltraram e manipularam redutos como o Arsenal da Marinha ou a GNR. Ou explicar as "listas de limpeza" que corriam nos círculos radicais pouco antes do golpe e que, no julgamento, muita gente disse conhecer. Até Granjo soube, mas não levou a sério o aviso.
A "memória republicana" caiu numa cilada. O jogo de apologia/demonização redunda em boomerang. Se à República tudo se deve perdoar porque o salazarismo se legitimou sobre o escombro dos seus desastres, poderíamos também ser induzidos ao julgamento inverso: devemos à República quatro décadas de ditadura. Este tipo de memória é ilegítimo, de nada serve e não ajuda a assumir a História.
O efeito da "noite sangrenta" foi inequívoco: abriu o caminho à cadeia das conspirações militares que vão ter como desfecho o desaparecimento da I República - incapaz de se regenerar.
(1) Jornalista
* Ilustração Portuguesa, n.º 819, 29 de Outubro de 1921