Analfabetismo e educação popular

Analfabetismo e educação popular

A escola, em particular a escola primária, passou a ser vista como o lugar privilegiado para a formação do cidadão * 

por Joaquim Pintassilgo (1)
 

Um dos principais lugares-comuns presentes em grande parte dos discursos difundidos entre o final do século XIX e o início do século XX, designadamente os oriundos do campo republicano, era o que considerava a educação como factor principal do progresso das sociedades. A República era imaginada como um momento de regeneração social, ou seja, de construção de uma nova era, ainda que enraizada no passado da comunidade nacional, mas que a retirasse da decadência em que havia caído, segundo se acreditava, por responsabilidade da Monarquia.

Depois do momento mágico que foi a instauração da República, encarada como redentora, muitos dos actores do campo republicano tiveram consciência de que a principal tarefa só então começava, consistindo esta em implantar a República na mente e, principalmente, no coração dos portugueses. Esta lógica de revolução cultural implicava o combate à entidade que surgia como o inimigo a abater no terreno cultural - a Igreja Católica. Daí a importância assumida pelo projecto de laicização da sociedade. O laicismo apresentava-se, na verdade, como a alternativa ao catolicismo no que se refere à função de integração social.

A escola, em particular a escola primária, passou a ser vista como o lugar privilegiado para a formação do cidadão; daí a importância que a educação moral e cívica desempenhava no currículo escolar, tanto no que se refere à sua dimensão formal como no que diz respeito a todo um vasto conjunto de símbolos e rituais. No centro dessa verdadeira religiosidade cívica estava o culto da pátria, da sua história e dos seus heróis. Para além de consciente dos direitos e deveres correspondentes, o cidadão a formar devia ser, ainda, exemplar do ponto de vista da sua moralidade (Pintassilgo, 1998).

O activismo político republicano, o labor cultural de pendor iluminista da maçonaria e a difusão de uma mentalidade positivista foram alguns dos factores que favoreceram a afirmação de um discurso que colocava o povo e a sua educação no centro do debate político e social. Subjacente a este debate estava, em primeiro lugar, a questão do analfabetismo. As estatísticas publicadas na segunda metade do século XIX conduziram à sua traumática descoberta pela minoria culta do país, ao mostrarem que a esmagadora maioria do povo português nunca havia frequentado a escola, não sabendo ler nem escrever. Tendo por base os censos populacionais realizados na transição do século XIX para o século XX, tal como foram analisados por António Candeias (2001, 2005), podemos ver a evolução da taxa de analfabetismo da população com idades iguais ou superiores a sete anos: de 78 por cento em 1878, baixou para 62 por cento em 1930 (ver gráfico nestas páginas).

O autor chama a atenção para a pouca fiabilidade da referida fonte e para as limitações do questionamento - sabe (ou não) ler e sabe (ou não) ler e escrever? Convém acrescentar a isso o carácter redutor do próprio conceito de analfabetismo. Uma coisa era, no entanto, segura e não passou despercebida aos olhos da época: a impressionante percentagem de portugueses que não tinha acesso à cultura escrita, mesmo se comparada com os outros países da Europa do Sul, o que sublinhava a dimensão do nosso atraso, tema que vai acompanhar, em momentos diversos, o debate sobre a idiossincrasia nacional.

O discurso então difundido, em particular pelos republicanos, dramatizou ao limite esse problema, pressupondo um olhar acentuadamente desvalorizador sobre a figura do analfabeto, colocado na antecâmara da "civilização" e a quem era atribuída uma espécie de menoridade cívica. O analfabeto, pela sua incapacidade de aceder à cultura escrita, não estaria em condições de ser o cidadão-eleitor, consciente e participativo, almejado pela República. Em artigo da Educação Nacional constata-se que o homem sem instrução "pouco difere dos irracionais" e noutro artigo, desta vez n"A Federação Escolar, compara-se o homem sem instrução a "um selvagem que o professor precisa civilizar".

 

Instrução versus educação

Ao longo do período republicano foi visível a tensão entre os dois pólos de um binómio já tradicional - instrução versus educação. Qual a importância relativa a atribuir a uma e outra no âmbito da educação escolar? A resposta a esta questão não foi consensual no interior do campo educativo republicano. Para um conjunto importante de publicistas, o combate ao analfabetismo, logo, a instrução, constituía a tarefa prioritária, sendo necessário abrir escolas, combater o analfabetismo, difundir o ABC. "A mais imperiosa das necessidades, no momento presente, é criar escolas, desenvolver a instrução, combater o analfabetismo... Não tenhamos, pois, dúvidas e preparemo-nos todos para a famosa cruzada em prol do povo português, reclamando com toda a nossa energia que se criem escolas, muitas escolas por essas ignoradas aldeias, onde mal vislumbrou ainda a luz do progresso .

O ABC - o segredo da cultura de um povo! O ABC abre as portas do futuro. Esse futuro é de luz, amor e felicidade!... O ABC é iluminado e vivificado pela grandeza dum ideal... O ABC é o símbolo da Humanidade." (Eça de Queirós, 1922, Educação Portuguesa)

Por outro lado, diversos pedagogos e educadores, entre os quais aqueles que estavam ligados ao movimento da chamada Educação Nova, aparecem a defender posições dissonantes das já enunciadas. António Sérgio é um dos que denunciam o que considera ser a "superstição do alfabeto", justificando-se da seguinte forma: "Ler é, ou deve ser, um instrumento de trabalho: por si só nada vale e pode ser calamitoso." Adolfo Coelho põe igualmente em causa a "convicção de que o analfabetismo é, em si, um grande mal que urge extirpar" e relativiza as vantagens do ler, escrever e contar, ao mesmo tempo que valoriza a cultura popular de que os analfabetos são portadores. A crítica ao "fetichismo do alfabeto" surge naturalmente acompanhada por uma valorização da educação relativamente à instrução. O inspector escolar Albano Ramalho, por exemplo, não obstante considerar o analfabetismo como "um inimigo" a abater, à semelhança do que já acontecera em toda a Europa, conclui o seguinte:"Destruir o analfabetismo é útil, é alguma coisa, mas não é tudo. Temos pensado só em instruir e temo-nos esquecido de educar, de fortificar a raça, de a valorizar."

É a sacralização da educação escolar que explica o investimento simbólico no combate ao analfabetismo e o desenvolvimento de múltiplas iniciativas no campo da alfabetização, tanto de crianças como de adultos, cujo exemplo mais emblemático é constituído pelas Escolas Móveis pelo Método de João de Deus. Vão conhecer, igualmente, a luz do dia várias outras experiências nos terrenos da educação popular, dinamizadas por sectores políticos e sociais muito diversificados - do Estado à iniciativa particular, do republicanismo e da maçonaria ao anarquismo, das associações operárias à intelectualidade - e assumindo formas muito diversas, como creches, asilos, escolas operárias, escolas de centros republicanos, universidades livres e populares, entre muitas outras.

 

Redução moderada

Não obstante esse investimento, a taxa de analfabetismo conheceu uma redução bem moderada. Entre os censos de 1911 e 1930, intervalo que abarca genericamente o período republicano, foi apenas de 7 por cento. Como diz António Nóvoa (1988), "o insucesso do combate ao analfabetismo constituiu, sem margem para dúvidas, um dos grandes fracassos da República. Fracasso tanto mais doloroso quanto as promessas tinham sido grandiosas e, provavelmente, desmedidas". Esse insucesso não foi e, provavelmente, não poderia ter sido, compreendido na época, pelo menos na sua globalidade. Na verdade, não era suficiente, como nunca o foi, o voluntarismo de um poder político iluminado, mesmo quando o investimento financeiro, na criação de escolas ou na formação de professores, ficou, como foi o caso, aquém das expectativas retóricas.

Têm sido invocadas razões como o atraso económico do país, a concentração da população no mundo rural, a ausência da pressão religiosa, em parte coincidentes com toda a Europa do Sul, mas que tiveram certamente o seu papel, ainda que Portugal se tenha manifestado, a este nível, como duplamente periférico. Como têm notado diversos autores, as razões principais, são, porventura, as de natureza cultural e, mesmo, antropológica, ainda que em relação com as anteriores. Como nota António Candeias (2001),"a alfabetização e a escola estão intimamente ligadas às formas de vida e cultura das pessoas". Segundo Rui Ramos (1998), a incapacidade para ler e escrever não era sentida como um problema pelo povo português, por não o incapacitar para a vida e para o trabalho. Além disso, o analfabetismo era tão elevado que se perpetuava a si próprio. A escola não era sentida como uma necessidade por comunidades mergulhadas numa cultura oral e que não vislumbravam essa mesma escola como veículo de promoção social. "Pelo contrário, é corrente que as comunidades a vejam como uma imposição, como uma violência inútil" (Nóvoa, 2005). Convém não esquecer, ainda, que essas comunidades recorriam às suas crianças como mão-de-obra nas pequenas explorações familiares. "De facto, em nome de que benefício iria uma família abdicar de mais instrumentos de trabalho?" (Candeias, 2005).

Fontes, como os relatórios de inspecção, mostram-nos à evidência que essa foi, historicamente, uma das principais causas da fuga à escola, não resolvida por uma obrigatoriedade retórica nem por punições que não passavam de letra de lei. As transformações económicas, sociais e culturais de Portugal ao longo do século XX, a par da política minimalista do Estado Novo, acabaram, paradoxalmente, por tornar possível uma ultrapassagem, ainda que gradual e limitada, desse problema.

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(1) Professor da Universidade de Lisboa - Instituto de Educação

* Direcção-Geral de Arquivos/Arquivo Distrital de Lisboa