A imprensa laica foi a que mais divulgou Fátima

A imprensa laica foi a que mais divulgou Fátima

A multidão em Fátima, a 13 de Outubro de 1917, para presenciar o chamado "milagre do sol" *

Por António Marujo (1)

 

Foi a imprensa republicana que mais ajudou a divulgar o fenómeno de Fátima, através das polémicas e dos ataques dirigidos ao fenómeno. Ali se traduzia um conflito de mentalidades, opondo o racionalismo à crença e à religiosidade popular.

  

Se não fosse a imprensa republicana, Fátima poderia não ser tão conhecida. António Teixeira Fernandes, sociólogo da Universidade do Porto, não tem dúvidas: "No fundo, os jornais que mais deram a conhecer Fátima foram os jornais republicanos."

Inesperado? Teixeira Fernandes, que investigou todos os relatos e polémicas da imprensa nos primeiros anos do fenómeno, explica ao P2 a razão: os jornais republicanos "eram cadeias fortes de propaganda, com uma grande difusão; atacando Fátima, deram a conhecer, expandiram o fenómeno".

A polémica começa cedo. Em Maio de 1917, os três videntes - Lúcia e os primos, Francisco e Jacinta - contam que viram Nossa Senhora numa aparição. A mesma pede-lhes, segundo o relato, que voltem ao local - a Cova da Iria, um ermo para os rebanhos pastarem, nos arredores de Fátima - aos dias 13.

Em Agosto, antes da quarta aparição, O Mundo, jornal do Partido Democrático de Afonso Costa, já fazia comentários jocosos sobre o que estava a suceder. Com o título "Impostores!", o articulista referia os acontecimentos da serra d"Aire e acrescentava: "A raça dos impostores, que é a causa da religião e das crenças católicas de certo povo bisonho, tem exercido a sua indústria através dos tempos (...). Abra o povo os olhos e corra a chicote os charlatães que negoceiam com a sua crença."

O Mundo é o principal "instrumento da defesa da causa republicana e do combate contra as aparições", escreve Teixeira Fernandes em O Confronto de Ideologias na Segunda Década do Século XX - À Volta de Fátima (ed. Afrontamento), onde analisa essas polémicas.

N"O Mundo, chega-se a escrever que o que se passa é "um abuso e uma exploração do clero". Em Outubro, a reportagem de Avelino de Almeida no jornal O Século, sobre os acontecimentos de dia 13 desse mês, quando se regista a última aparição e o chamado "milagre do sol" - o sol teria girado sobre si mesmo e como que entrado em queda -, é objecto de debate na imprensa republicana e "desperta mesmo a irritação de muitos", observa Teixeira Fernandes.

 

Prudência dos católicos

No outro lado, a imprensa católica é inicialmente mais contida: perante o que se passa, os jornais católicos esperam as considerações da hierarquia sobre as aparições. "Tinham um espaço mais reduzido de opinião em questões desta natureza. Eles não podiam consagrar o fenómeno. Nunca o criticaram, nunca o negaram, mas usaram uma grande prudência."

Essa prudência, explica ainda Teixeira Fernandes, "era ditada pela exigência da intervenção da autoridade eclesiástica, que tardava". O processo canónico instituído pelo bispo de Leiria, em 1922, seria concluído em 1929.

Durante esses anos, e sobretudo nos primeiros tempos, domina na imprensa católica essa prudência. "Numa primeira fase, o fenómeno é tido como espontâneo, indo ao encontro de uma predisposição popular para acreditar. Os jornais tendem a não fazer mais do que corresponder a esse sentimento e a dar-lhe adequada expressão", diz.

Mesmo assim, há debates também no campo católico, desde os mais cépticos até aos que queriam fazer do fenómeno uma bandeira contra a República, nascida em 1910, passando pelos moderados, que preferiam esperar para ver.

A prudência católica dilui-se na primeira metade da década de 20, quando as fracturas se agravam de novo entre Estado e Igreja. Mas estas tensões "têm a ver com a inscrição do fenómeno religioso no fenómeno político", diz Fernandes.

Ou seja: "Muitas das vozes mais aguerridas do campo católico contra os republicanos, na defesa de Fátima, inscrevem-se na defesa de partidos monárquicos." O que traduz mais divergências políticas do que "pluralismo de posições no interior do campo católico".

Significa isto que Deus escreveu direito pelas linhas tortas da imprensa republicana? Teixeira Fernandes não vai tão longe: "Não direi isso. Fátima, por si própria, teria a expansão que tem hoje. Mas naquela época, em que os meios de comunicação não tinham a capacidade de hoje, [os jornais republicanos] ajudaram a tornar o fenómeno mais conhecido."

Certo é que, logo nas últimas manifestações, em Setembro e Outubro, já uma enorme multidão se concentra na Cova da Iria, para presenciar o que se passaria. Na última data, para o "milagre do sol", já estarão 50 mil a 70 mil pessoas. A prudência católica manifesta-se em outros âmbitos. Nos sermões e homilias que acompanham as primeiras peregrinações que se começam a fazer, a maioria dos padres não se refere à mensagem recebida pelos videntes, diz o padre Luciano Cristino, director do Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima.

"Os pregadores limitam-se a falar da devoção a Nossa Senhora, alguns nem sequer tomam posição sobre o que aconteceu", diz Cristino. Da parte da hierarquia da Igreja havia essa preocupação de não falar da mensagem de Fátima. Isso só acontecerá com o início do processo canónico, instituído pelo bispo D. José Alves Correia da Silva, convicto da veracidade das aparições.

O fenómeno de Fátima cruza-se com outros acontecimentos. A I Guerra Mundial, nomeadamente, está presente nos diálogos dos videntes com a aparição. Muita gente quer que os pastorinhos perguntem quando acaba e quando é que os soldados regressam. "A guerra torna-se, de facto, uma preocupação geral, mesmo para os republicanos, pela inquietação criada entre a população", diz o sociólogo.

Quando o Governo republicano cede na integração de capelães no Corpo Expedicionário Português (CEP), a questão religiosa dos primeiros anos conhece um momento de apaziguamento. Mas Maria Lúcia Brito e Moura, do Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica, observa que, ao mesmo tempo, há sectores radicais do republicanismo que abrem "outra frente de combate", lutando contra a presença dos capelães nos campos de batalha dos portugueses em França e na Flandres.

Autora de A Guerra Religiosa na Primeira República, Lúcia Moura recorda que, entretanto, muitos republicanos acabam por defender a integração dos capelães no CEP.

"A guerra foi, talvez, um dos maiores desastres da I República", diz Teixeira Fernandes. "Fez esmorecer o poder político, porque os próprios soldados exigiam a presença dos capelães no teatro de guerra. Há, da parte do poder político, uma certa cedência e um abrandamento da perseguição, que era sistemática, à própria Igreja."

 

Conflito de mentalidades

Fátima traduz o conflito de mentalidades que há 100 anos se manifestava em dois pólos: de um lado, uma República que adopta o "racionalismo, redutor do fenómeno sobrenatural e do religioso", que tentou acelerar mesmo esse programa,procurando "secularizar a sociedade portuguesa, através da escola"; do outro, uma população que persiste na crença.

Teixeira Fernandes observa: "A República quis destruir esta religiosidade popular, que achava que estava imbuída de fanatismo e irracionalidade." Não se pode dizer que, em Fátima, a população encontre "uma forma de reagir contra o racionalismo proposto". As populações reagiram antes com a sensibilidade ao maravilhoso, que "acompanha a sensibilidade popular em todas as épocas".

Neste sentido, e tomando a expressão de forma mais vasta, Teixeira Fernandes aceita falar de uma "questão religiosa" sócio-cultural, "de ataque às populações e confronto de mentalidades e culturas, de imposição do racionalismo contra uma fé mais ou menos tradicional, vivenciada pelas populações".

A polémica culmina de novo entre 1922 e 1924. Em Março de 1922, há um atentado contra a primitiva capelinha das aparições, que o povo construíra. Entretanto, o Governo proíbe as peregrinações e a imprensa católica apela à desobediência civil. O administrador (representante do Governo) de Ourém, Artur de Oliveira Santos, o mesmo que detivera os videntes no dia da aparição de Agosto, defendia, no entanto, que devia autorizar as peregrinações, enquanto estas não perturbassem a ordem pública.

No campo republicano, recorda Teixeira Fernandes, um jornalista criticava também o Governo: havia violência sobre quem queria ir a Fátima, mas não sobre quem ia ao Sameiro, Bom Jesus, Santa Luzia ou Senhora dos Remédios. O iluminismo restringia a sua luta apenas ao novo fenómeno.

(1) Jornalista